A BARCA DA FÉ
1.
Experiência Humana
Conta-se
que era uma vez uma nota musical que disse: “Não é uma nota que faz a música”,
e, por consequência, já não houve música. Depois uma palavra disse: “Não é uma
palavra que faz um livro”, e aconteceu que já não houve livro. Em seguida, uma
pedra disse: “Não é uma pedra que faz uma casa”, e aconteceu que já não houve
casa. Depois, uma gota de água disse: “Não é uma simples gota de água que faz um
rio”, e aconteceu que o rio secou. Olhando para isto, o homem aproveitou e
disse também: “Oh, não é um gesto de amor que poderá salvar a humanidade.” E o
que é que aconteceu? Começou a surgir à sua volta um ambiente de injustiça,
violência e egoísmo.
2.
Liturgia da Palavra
Posto isto, Jesus no
evangelho de hoje apresenta-nos as condições necessárias para a prática de
simples gestos alternativos, que podem marcar a diferença. Mais do que uma aula de engenharia
civil, Jesus serve-se de uma imagem do quotidiano para explicar aos seus
discípulos as bases da casa da nossa fé.
Por isso, com
realismo e honestidade, não queiramos correr o risco do homem insensato, que
construiu a casa sobre a areia. Jesus apresenta-nos o melhor seguro contra
todos os riscos: a obediência à Palavra. Um seguro que resiste às chuvas dos
preconceitos e do legalismo, às torrentes do conformismo e da corrupção, e aos
ventos da mediocridade e do egoísmo.
3.
Reflexão teológica
E
Tal como afirma o documento Verbum Domini nos n.º 90-120, é desta obediência à
Palavra de Deus que deriva: toda a missão da Igreja, o anúncio do Reino de
Deus, a nova-evangelização, o testemunho cristão, a promoção da justiça, a
defesa dos direitos humanos, a paz entre os povos, a caridade activa, as
implicações vocacionais, a compreensão do sofrimento, a pobreza a escolher ou a
combater, a defesa da natureza (ecologia), o reconhecimento do valor e
importância da cultura, o uso correto dos meios de comunicação, o valor do
diálogo inter-religioso e a necessidade vital da liberdade religiosa.
Deste modo, o Papa
Bento XVI institui este Ano da Fé, não só para celebrar o jubileu do Concílio
Vaticano II, mas também para redescobrirmos os alicerces da casa da nossa fé,
fazendo com que esta produza frutos. Aliás, gostaria de recordar as palavras da
sua homilia no Terreiro do Paço, em Lisboa, aquando da sua visita a Portugal,
em 2010: “Glorioso é o lugar conquistado por Portugal entre as nações pelo
serviço prestado à dilatação da fé: nas cinco partes do mundo, há Igrejas
locais que tiveram origem na missionação portuguesa.”
4.
Aniversário da Diocese do Funchal
Sem
dúvida que o arquipélago da Madeira veio a tornar-se uma plataforma estratégica
da expansão ibérica entre o mundo conhecido e o mundo ainda desconhecido, e a
Diocese do Funchal, por inerência, tornou-se também numa ponte estratégica de
evangelização entre a Europa cristã e as religiões/religiosidades do resto do
mundo.
Celebrar
os 499 anos da fundação desta diocese, que fora a maior do mundo na época, é
fazer memória dos milhares de missionários que por aqui passaram e desejar esse
glorioso ardor missionário, de modo a comunicar Jesus Cristo aos milhares de
turistas que por aqui passam e edificar “comunidades cristãs, vivas e
apostólicas”, como determina o programa do vosso triénio pastoral. Sabemos como
é importante a missão na vida da Igreja e como o mundo espera de nós, cristãos,
um contributo diferente para a edificação da sociedade.
A propósito, é
interessante notar como o programa Erasmus das universidades europeias tem
transportado inúmeros alunos pela Europa, e, a título de exemplo, como as
ideias destes alunos ocidentais acabaram por derrubar recentemente a
islamização política da Turquia. Do mesmo modo, podem crer que com a fé
acontece o mesmo: além de mover montanhas, ela também é capaz de decifrar a
prece que o nosso silêncio esconde, de nos segurar com o fio da esperança e de
transformar silenciosamente a vinha do mundo.
Muitas vezes somos
questionados sobre o que a Igreja deve ou pode fazer para mudar a sociedade. Há
muitos planos estratégicos, mas sem o contributo de cada um, que por vezes até
pode parecer insignificante, isso nunca acontecerá! Daí que me atreva a
pedir-vos uma redescoberta da verdadeira identidade cristã, a nível pessoal e
comunitário. Não são precisos grandiosos projectos para mudar a sociedade, basta
que a vida de cada um e das comunidades se transformem em fidelidade ao
Espírito! E a aposta inicial é o caminho da caridade activa, como nos sugere o
Papa Francisco.
Para
terminar, diz-nos o poeta Fernando Pessoa que “todo e qualquer gesto é um ato
revolucionário”. Portanto, e ao contrário da história inicial, não nos
esqueçamos que há pequenos gestos de amor que podem criar um ambiente sadio à
nossa volta, que podem dar testemunho da nossa fé, e mais do que isso: que
podem restituir à ilha da Madeira a ousadia missionária que já teve no passado,
não permitindo que a barca da fé fique estacionada no porto marítimo!
+ Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz
Funchal, 12 de Junho de 2013.